Marisa
Fonseca Diniz
Nunca se viu tanto glamour em torno de certas patologias
psiquiátricas como nos tempos atuais, o que deveria ser tratado como doença,
muitas vezes é visto como algo glorioso, o que não faz o menor sentido quando
analisamos o conceito da loucura.
A loucura acompanha o ser humano ao longo da história, na
Idade Média, por exemplo, a loucura era vista como uma experiência pessoal,
apesar da igreja considerar uma espécie de possessão demoníaca, já no século
XV, a loucura era vinculada à bruxaria e durante a Renascença foi associada à
razão.
O filósofo francês Voltaire define a loucura como uma
doença do cérebro que impede o homem de pensar e agir como os demais seres
humanos. “Se ele não pode cuidar de sua propriedade, ele é posto sobtutela; se
a sua conduta é inaceitável, ele é isolado; se for perigoso, ele é confinado;
tornando-se furioso, ele é amarrado.” O filósofo alemão Hegel definia a loucura como “um
simples desarranjo, uma simples contradição no interior da razão, que continua
presente.”
Nos séculos seguintes, a loucura ganhou uma nova
conotação, passando a ser considerada como um desvio de norma, sendo os loucos encarcerados
exclusivamente em asilos. Entre os séculos XIX e XX, considerando a teoria do
inconsciente de Sigmund Freud, a loucura deixou de ser tratada como algo
incompreensível tornando-se uma
expressão carregada de sentido.
Psiquiatricamente, a loucura é considerada uma doença que
pode ter origem na genética, pode ser psicológica, social e física. Sendo
assim, podemos dizer que a loucura reúne todas as doenças, que possuem
manifestações psicóticas, como a esquizofrenia, as psicoses, as doenças mentais
como as neuroses, psicopatias e as oligofrenias.
Segundo o sociólogo Lévy Bruhl, a loucura é um problema
social do homem em relação ao seu convívio com a sociedade, já para Franco
Basaglia pode ser considerada um problema político, uma vez que, o hospício é
construído para controlar e reprimir trabalhadores que perderam a capacidade de
responder pelos seus interesses capitalistas de produção. Neste caso,
concluímos que louco não é aquele que tem definição clínica, e sim aquele que
não é capaz de produzir algo, o que abala os interesses e as convicções da
sociedade da qual pertence. Do mesmo modo não se considera louco, aquela pessoa
que continua produzindo, mesmo quando é considerada doente segundo a definição
clínica.
É interessante ressaltar que a partir do século XX, o
número de manicômios mais que dobraram a sua capacidade, apesar destes locais serem
considerados insalubres aos portadores de doenças psiquiátricas, devido aos maus
tratos, uma vez que, os pacientes viviam isolados da sociedade, eram
abandonados pelos familiares e pelos órgãos de saúde, além de não haver alimentação
adequada e a hospedagem ser completamente precária, agravando o problema de maneira progressiva ao longo das décadas.
Durante o século XX, o médico e psiquiatra italiano Franco
Basaglia acabou sendo o precursor do movimento da reforma psiquiátrica, que
ficou conhecida como Psiquiatria Democrática, pois criticava a postura
tradicional de como a loucura era tratada pelos médicos, onde a internação e o
isolamento eram considerados como o melhor modelo existente até então.
No entanto, após a leitura do livro “História da Loucura
na Idade Clássica” do filósofo francês Michael Foucault, o médico Basaglia
fundamentou a negação da psiquiatria como sendo um discurso e uma prática
hegemônica sobre o que era de fato a loucura, pois em seu entender, a psiquiatria
sozinha não era capaz de entender a complexidade da loucura.
Em 1961 ao assumir a direção do Hospital Psiquiátrico
Gorizia, Basaglia iniciou mudanças com o objetivo de transformar o local em uma
comunidade terapêutica, a fim de haver um tratamento mais humanizado aos
internos. No entanto, com o tempo foi percebido que apenas o tratamento
humanizado não era suficiente, uma vez que as condições de miserabilidade do
hospital necessitavam de transformações profundas tanto no nível da assistência
psiquiátrica como nas relações entre a
sociedade e a loucura.
No ano de 1970, Basaglia assumiu a diretoria do Hospital
Provincial da cidade de Trieste iniciando dessa maneira o processo de
fechamento do hospital psiquiátrico, substituindo-o por uma rede de atendimento
mais humanizado com serviços comunitários, emergências psiquiátricas, um
hospital geral, cooperativas de trabalho protegido, centros de convivência e
moradias assistidas para os loucos.
A organização Mundial de Saúde, OMS, credenciou o Serviço
Psiquiátrico de Trieste no ano de 1973 como sendo referência mundial para a
reformulação da assistência em saúde mental. No ano de 1978 foi aprovado na
Itália a Lei da Reforma Psiquiátrica Italiana conhecida pela Lei 180 ou Lei de
Basaglia reconhecendo o tratamento humanizado de grupos-apartamento para os
loucos. (Referência: AMARANTE,
Paulo. O Homem e a Serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria)
Em alguns países, como o
Brasil, por exemplo, a loucura era vista como um mau que deveria ser combatido de
qualquer maneira, mesmo que perversamente. Nem sempre as pessoas, que eram
internadas nos manicômios por seus familiares ou pelas autoridades de segurança
pública eram de fato portadoras de alguma doença mental ou possuem algum
transtorno psiquiátrico.
Essa afirmação é confirmada
pelos registros nos hospitais psiquiátricos do século XX, onde a maioria dos pacientes
não tinha qualquer histórico de demência, sendo internadas apenas por serem pessoas
não agradáveis e incômodas, ou seja, bastavam ter
opiniões políticas e sociais diferentes dos demais
para serem enviadas ao manicômio. A família que deveria proteger seus
filhos e agregados era a mesma que no auge da sua ignorância e do puro
narcisismo condenava os indesejados a terem uma vida deprimente de total falta
de dignidade e liberdade nestes complexos hospitalares do terror.
A sociedade em si pouco se importava com
as atrocidades que eram cometidas por detrás dos muros dos manicômios, mesmo
tendo ciência de que a maldade não curava ninguém. Não é a toa que vários
hospitais psiquiátricos no Brasil eram considerados mais campos de concentração
do que um hospital de reabilitação, como é ocaso do Hospital Colônia de
Barbacena, onde aqui faço um breve relato do que acontecia no local.
“Fundado em
12 de outubro de 1903 na cidade de Barbacena, Minas Gerais, o Hospital Colônia
foi referência no tratamento psiquiátrico da época, onde diversas famílias encaminhavam
seus indesejados e desajustados para que pudessem ser tratados no manicômio. No
entanto, com o tempo a cidade de Barbacena ficou conhecida como a Cidade dos
Loucos.
Documentos
da época relatam que mais de 70% das pessoas que foram internadas no local,
sequer tinham qualquer doença mental, sendo considerado o local ideal para o
envio de gays, alcoólatras, pobres, negros, silvícolas, militantes políticos,
mães solteiras, mulheres estupradas, prostitutas, amantes de políticos,
crianças indesejadas, mendigos, andarilhos, pessoas sem documento e até mesmo
pessoas que em algum momento tiveram alguma crise nervosa ou tristeza contínua,
conhecido hoje como depressão.
O terror
dos inocentes já começava antes mesmo de entrar no hospital, os pacientes que
vinham de outras localidades eram obrigadas a pegar o trem mais conhecido como trem de doido
a caminho do inferno, uma viagem sem
volta segundo relatos de moradores antigos da cidade, o que lembrava
muito os campos de concentração nazistas. Na entrada, os pacientes eram
separados por sexo, idade e características físicas, mas não pense que cada um
deles recebia um tratamento humanizado com camas limpas ou banheiros
higienizados, não eles dormiam sobre camas de ferro enferrujadas revestidas de
capim, comiam lavagem e tomavam água de esgoto.
O hospital
que tinha capacidade para 200 pacientes chegou a ter 5 mil internos no local
vivendo em condições subumanas, onde ficavam por dias e noites trancafiados em
celas, principalmente aqueles que eram considerados desobedientes. Não havia
corpo clínico habilitado, poucos psiquiatras para atender uma legião de pessoas
que lá viviam em condições inóspitas. Além do que, os responsáveis pelo tratamento
dos pacientes eram treinados por agentes de segurança para evitar fugas e
brigas.
O tratamento
dos internos era feito por meio de terapia de choque, ducha escocesa de alta
pressão, altas doses de medicação, camisa de força, tortura psicológica,
abandono, além de estupros e maus-tratos. Estima-se que até o final da década
de 1980, 60 mil pessoas morreram no local em decorrência não apenas dos
maus-tratos recebidos como também de fome, frio e outras doenças.
O terror do
Hospital Colônia não ficava restrito apenas aos vivos, nos períodos de maior
lotação, em média 16 pessoas morriam por dia e por incrível que pareça o
hospital lucrava com isso. Entre os anos de 1969 a 1980, mais 1.800 corpos
foram vendidos para 17 faculdades de medicina do Brasil, sem que ninguém
questionasse absolutamente nada, como se fosse algo normal. O mais absurdo é
que quando houve um excesso de cadáveres disponíveis, os corpos acabaram sendo
decompostos em ácido no pátio do próprio hospital, na frente de todos os
internos, apenas com o intuito de comercializarem as ossadas. (Referência:
ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro - Vida, genocídio e 60 mil mortes no
maior hospício do Brasil).
Em 2001, quando foi aprovada
a Lei Paulo Delgado (Lei Nº 10.216), que extinguia a internação de longo prazo,
o hospital deu 154 altas e 185 dos internos remanescentes acabaram morrendo.
Atualmente, há menos de 150 sobreviventes do holocausto brasileiro, sendo que
todos recebem tratamento humanizado e adequado no Centro Hospitalar
Psiquiátrico de Barbacena da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais –
Fhemig. Estes pacientes vivem hoje no projeto Casa Lar criado para inseri-los
na comunidade, que são áreas dentro do hospital que contam com cozinha, sala de
TV e estrutura independente que abriga no máximo 8 pessoas, além de receberem
indenização do Estado pelas atrocidades cometidas por todos os envolvidos nesta
barbárie.
Em 1996, o torreão do antigo hospital foi transformado no Museu da Loucura,
em memória aos antigos pacientes que foram torturados até a morte. E para que
toda a sociedade se lembrasse do episódio negro da psiquiatria no Brasil.”
Ao longo dos anos, muitas pessoas tem
acreditado em teorias e na necessidade de se fazer uma higienização na
sociedade, por assim dizer, uma eugenia para que somente os fortes,
capacitados, brancos e ricos, sejam valorizados.
Dentro desta proposta verificamos que
com o advento da internet em 1969, no auge da guerra fria, a loucura foi sendo
deixada de lado dando voz ativa a indivíduos poderosos que não mediam esforços
para destruir quem não acatasse seus desmandos políticos ou sociais numa
tentativa de impor a qualquer custo suas atrocidades em relação àqueles que iam
contra suas demagogias.
Com a abertura comercial da internet em
1987 nos Estados Unidos e no ano seguinte no Brasil, a rede criou um novo
universo, porém só se popularizou mesmo a partir da década de 1990. O mais
impressionante é que até 2003 mais de 600 milhões de pessoas tinham acesso à
internet, e em 2007 já eram mais de 1 bilhão e 300 milhões de pessoas
conectadas, ou seja, a internet passou a ser um meio lucrativo.
O mais incrível é que além de ser lucrativa,
a internet passou a ser o lugar preferido das pessoas que possuem algum tipo de
distúrbio psicológico, simplesmente por acreditarem que atrás de uma tela de
computador ou celular, qualquer atitude por mais insana que pareça ser jamais
será descoberta, uma vez que, a rede de internet para estas pessoas é terra de
ninguém.
A quantidade de pessoas que se expõe na
rede apenas com a intenção de serem populares ou influenciadoras digitais é
enorme. Não raramente vemos notícias de que um ou outro influenciador tirou a
própria vida por não se sentir tão querido na vida real como na virtual, o que
denota a falta de equilíbrio emocional de muitos indivíduos que fazem da
internet seu porto seguro.
Um fato preocupante que tem surgido nos
últimos anos é a rede estar sendo usada para disseminar ódio, não apenas entre
pessoas comuns como também no meio político, o que nos remete ao passado,
quando a sociedade em si condenava os diferentes como sendo pessoas
indesejadas. Nem mesmo o tempo tem conseguido abrir os olhos daqueles
indivíduos que insistem em negar a própria história.
Psiquiatras dizem que o negacionismo é
uma defesa nos quais as pessoas tendem a usar quando se sentem ameaçadas por
algo, no entanto, essa negação proporciona uma abertura maior para teorias de
conspiração, que não provam absolutamente nada, apenas proporcionam mais terror
e pânico.
A cobrança constante da sociedade em
tentar impor certos padrões, tem feito com que pessoas ingênuas, por assim
dizer, sejam usadas para promover fórmulas prontas de sucesso por indivíduos
sem escrúpulos, que visualizam apenas dinheiro fácil. O que podemos constatar
que há dois lados distintos, o dos carentes emocionais que acreditam em
qualquer conselho de como se tornar um notável financeiramente e o outro do
charlatanismo, que se aproveita da fraqueza alheia para aplicar golpes de
maneira sutil, quase imperceptível.
Todavia, não há nada pior nos tempos
atuais do que a glamorização da loucura como sendo algo benéfico, o que pode
acontecer em qualquer lugar, tanto em uma organização como no meio político ou
na internet. Indivíduos com egos inflados manipulam milhares de pessoas, apenas
com o intuito de ter o poder nas mãos. Alguns indivíduos fazem o uso de promessas
infundáveis, na falsa intenção de alavancar a economia de um país ou os
negócios de uma empresa, pois sabem exatamente o que as pessoas desejam escutar,
como é o caso de diversos estadistas cruéis que ao longo dos anos se utilizaram
da mídia escrita, televisiva e da própria internet para manipular milhões de
cidadãos que buscavam uma solução imediata.
A exaltação desse tipo de comportamento
tem feito com que muitas pessoas acabem
sendo vítimas de suas próprias escolhas por não conseguirem enxergar o que pode
estar por trás desse fato. O narcisismo de querer estar sempre em evidência
mostrando aquilo que irá agradar uma parte da população pode por em risco uma
comunidade toda, principalmente se o foco principal for o democídio com a
intenção de eliminar da sociedade os indesejados.
Muito comum em governos extremistas que
veem seus opositores como uma ameaça constante, não por assim serem de fato,
mas porque na cabeça desses lunáticos sempre terá alguém conspirando contra sua
vida. O perigo se agrava, quando este mesmo indivíduo se vê como um salvador da
pátria e de todas as maneiras tenta se proteger dos supostos fantasmas que o
atormenta, aplicando a canetada com o intuito de prejudicar aqueles que
conspiram contra a sua administração ou família.
Nos casos mais extremos, a loucura pode
vir acompanhada de sadismo e vingança como aconteceu no maior holocausto de
todos os tempos, onde os fantasmas que atormentavam a mente do líder nazista fizeram
com que ele colocasse em prática um plano mirabolante e cruel matando milhões de
judeus e indesejados para supostamente criar uma raça pura.
A loucura também vem acompanhada de informações
falsas, de conselhos estaparfúdios e insinuações ameaçadoras disfarçadas de
moralidade e patriotismo. Não importando o contexto, desde que seja exaltado
por uma minoria de seguidores e apoiadores raivosos, e caso algo saia errado
basta matar os opositores, que tudo estará resolvido.
Doce ilusão de quem acredita em soluções
mágicas ou imediatistas e se coloca acima de tudo e todos, pois com o tempo a
vida poderá cobrar todas as atrocidades cometidas a um grupo pequeno de pessoas
ou a uma grande multidão. Quem sabe
assim, a loucura poderá receber tratamento adequado e deixará de ser mais
importante do que a sanidade e a empatia.
Artigo protegido pela Lei 9.610 de 19 de fevereiro de
1998. É PROIBIDO copiar, imprimir ou
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O trabalho A glamorização da loucura na Idade Contemporânea de Marisa Fonseca Diniz está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
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